Dona Terezinha
Na década de 2010, a alegria de uma nação por sediar o possível hexa da seleção brasileira se espalhava por todos os lados do país. A espera eufórica da população pela Copa do Mundo de 2014 andou de mãos dadas aos projetos de mobilidade urbana dos governantes, afinal, os olhos do mundo estavam voltados para o Brasil e não podíamos fazer feio. Fortaleza não foi diferente das demais sedes da copa quanto a vontade de se embelezar para os outros, e apresentou um projeto que mudaria a vida de muita gente: a construção do VLT em locais que abrigavam diversas moradias.
Nesses diferentes lares existiam histórias, pessoas e nomes que foram jogados em segundo plano. Mas isso não iria frear os passos de Tereza Fernandes da Silva, ou melhor, Dona Terezinha. A diarista de 54 anos nunca mediu esforços para alcançar seus objetivos. E desde muito nova sabia que a capital cearense era o destino certo para ser cenário da sua história.
Mas antes de colocar o pé na estrada, viveu seus primeiros 18 anos na cidade interiorana de Pacoti, que foi seu primeiro lar junto de sua avó e seus irmãos. Os pais eram separados mas sempre batalharam para trazer o melhor possível para os filhos, o pai como motorista de táxi e a mãe trabalhando em casas de família. Terezinha lembra com dificuldade que sua infância não foi a das mais fáceis. Havia dias incertos sobre o que ia ter na mesa do almoço, mas foi um período feliz e farto de frutas, que tinham ao redor da casa da avó.
Sem deixar que os percalços da vida fossem pedras no seu sapato, Dona Terezinha lembra da luta que travou com a família para realizar o sonho de morar em Fortaleza. A mãe determinou que a condição seria a filha não largar os estudos e trabalhar para poder sustentar a vida adulta na capital. Ela aceitou e partiu rumo ao desconhecido que era Fortaleza até então. Não deixou que qualquer medo a impedisse de viver na nova cidade, que se tornaria o seu lar na maior parte da vida. Contou com o ombro amigo e com o teto da tia por parte de pai no primeiro ano dessa nova jornada. Depois de um ano a mãe conseguiu adquirir uma casa — essa casa que ela tanto lutou para manter de pé perante o projeto do governo que revolucionaria sua vida. Era singela mas era seu lar. Além do valor sentimental, a casa se localizava em um lugar central, que facilitaria sua locomoção para supermercados, hospitais, escolas, entre outros lugares. Era a Comunidade do Rio Pardo ou como ela prefere chamar: Favela dos Índios.
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Viúva e com uma filha na casa dos 30 anos, Dona Terezinha batalhou bastante na vida para conseguir sobreviver no seu lar. Depois de tantas pedras no caminho, não imaginava que uma das grandes iria atravessar o seu caminho e ameaçar seu bem-estar na moradia que havia fundado tantos anos atrás. Em meados de 2010 chega na Comunidade do Rio Pardo maquinários que ameaçavam acabar com o lar de diversas famílias no lugar. Mais uma vez, Dona Terezinha trava uma luta em nome dos seus objetivos, só que essa seria bem mais árdua, desgastante e com cicatrizes que estão abertas até hoje.
Para essa nova batalha que lhe esperava ela contou com alguns companheiros que foram fundamentais para se manter firme e forte pelo seu lar. A Frente de Luta por Moradia cruza o seu destino e se tornaria fundamental para sua vida. Ela afirma o quanto foi importante ter as reuniões com a Frente, pois sem os conhecimentos adquiridos com o grupo e a força de outras pessoas que lutavam pelo mesmo objetivo, ela não seria a mesma. Com pesar, Dona Terezinha relembra que muitos moradores não tiveram a mesma atitude que ela e ficaram no escuro e passivos quanto à situação. Muitos se paralisaram com medo de ficar sem lar e outros ficaram cegos pela indenização que foi prometida para eles. Eram intimidados constantemente pelos responsáveis pela obra e esperam até hoje uma conversa com os governantes que pudesse esclarecer toda a situação.
Nadando contra corrente, Terezinha não ficou de braços cruzados e lutou para proteger sua moradia. Acionou as instituições, contou com a ajuda de universitários, com as informações de profissionais do direito, com o apoio de outras comunidades. Não ficou quieta mesmo com as retaliações grosseiras dos envolvidos na construção do VLT e com o risco iminente de ter seu lar destruído.
Episódios de brigas constantes entre quem comandava as máquinas e alguns moradores que acabavam com a vinda de viaturas, as casas sendo marcadas para serem derrubadas, o desrespeito com os moradores que estavam doentes e até com os idosos. Tudo isso era comum na comunidade. Em outro momento foi quebrado pelos tratores um cano que alastrou o cheiro de esgoto por toda a região. Ela relembra também de uma visita à comunidade do então governador da época, Cid Gomes, que acompanhado de seguranças empurravam os moradores. As conturbações foram inúmeras e tudo com o pretexto de que “a obra não pode parar”.
Hoje, depois de mais de 10 anos que iniciou sua luta por moradia digna, Dona Tereza afirma que informação é poder e que as pessoas das comunidades precisam de conhecimento. Ela acredita que a realidade teria sido diferente se outros moradores tivessem se juntado à causa e não deixado se levar pelo pensamento de que quem tem dinheiro tem poder. Dona Terezinha ainda persiste na luta por moradia, já que muitos problemas ainda estão pendentes, como os pagamentos de indenização de alguns moradores que não ocorreram.
Dona Tereza aprendeu muito com outras mulheres. Uma vez, ao ver outra companheira de luta, Edileusa, bater no carro e enfrentar o governador, via o quão corajosa ela era, e dizia a si mesmo que precisava fazer o mesmo. “Eu tenho que fazer isso também”.
O processo de tentativa por parte do governo para a retirada dos moradores começava na comunidade "Favela dos Índios" como dona Tereza gosta de chamá-la. “Foram começando a chamar pessoas, foram amolecendo o coração dos moradores”, para os retirarem de suas casas. Pediam para entrarem, para saberem o valor das casas, e assim, muitos moradores foram deixando. Em um desses momentos, Dona Tereza enfrentou uma das representantes do governo que convencia uma das moradoras a medir sua casa. Foi pra ela um dos momentos mais marcantes. “Você está iludindo os moradores”, sentindo que a mulher lhe ignorava, virava as costas.
Após muitas tentativas, conseguiram levar os moradores para a negociação com o governo, Dona Tereza acabou indo junto, pois via que estava só na resistência. Muitos advogados foram mandados na tentativa de negociar com os moradores; seriam 45 dias para receber o dinheiro e 45 dias para desocupar a casa. Mas Dona Tereza diz que o dinheiro só chegou dois anos depois. A maneira como o governo marcava as casas era algo muito violento, foi um momento marcante para ela quando viu sua casa sendo pichada e medida. Até mesmo não gostava de ver pessoas de verde, por lembrar dos homens que marcavam os lares dos moradores. Em outro momento, ao tentar filmar um dos homens mandados para pichar sua casa, foi ameaçada em seu próprio portão, e lembra, encenando o momento para nós, o quão foi marcante para ela.
No começo, por não saber se defender e pela pressão, pensou em desistir. Mas disse que voltaria para a luta e aprenderia. Para ela toda sua luta valeu a pena. Aprendeu a ver as situações e saber lidar, saber o que dizer, e não ver com ignorância sua realidade. “Vou voltar e vou lutar, e vou aprender (...) aprendi muito, eu posso ver um despejo e ficar do lado, saber o que vou falar”
Mesmo com a pandemia, quando teve dificuldade com as tecnologias e se sentiu muito mal por se ver insuficiente nesse período, sente que aprende muito e continua batalhando contra despejos, embora não tenha muito apoio da família. Dona Tereza sonha em ajudar mais pelo direito à moradia. Poder ajudar pessoas que estão na mesma situação vivida por ela, pois sente como é passar por isso. ”Eu quero muito poder ajudar as comunidades (...) Meu maior sonho é poder invadir um terreno e lutar, lutar pra vencer.”
“O governo não é dono, somos nós que colocamos o dinheiro no bolso deles, quem paga o salário deles somos nós, se a gente quiser tirar um deles, a gente tira. Não foi o governo que foi bonzinho, mas foi a frente, foi a luta, foi o povo que lutou para que muitos moradores pudessem continuar em suas casas.”
Ela lembra de ver várias comunidade unidas contra o governador, e ver eles se afastando. "Uma formiga não consegue levar uma barata sozinha. Se um dos dois não consegue, tem que ser todo mundo. Nós não vamos desistir, podem até ficar poucos, mas vamos continuar resistindo." Dona Tereza mudou-se de sua antiga casa, foi um dos momentos mais felizes durante sua luta. Foi em 2014, quando ela pôde sair e ter sua casa em segurança. “A gente não aguentava mais, era melhor sair (...) era polícia, tratores. Se uma pessoa aponta o celular para um policial, ela apanha”. Lembra toda a luta dela e dos moradores para que o governo enfim pudesse dar os valores prometidos. “Foi um pouquinho de vitória, depois de tanta luta.”
Dona Tereza diz que vai continuar enfrentando o governo, lutando:
“E quanto a nossa correção monetária… nós não vamos desistir, vamos continuar lutando pode ficar pouquinhos, mas é nosso, é direito nosso.”
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