Dona Cícera
Sentada com as estantes da biblioteca que hoje trabalha de fundo, espaço abandonado, a qual foi invadido por ela e suas companheiras para se tornar um espaço social; Dona Cícera conversa, por meio de lembranças de coragem e luta, sua trajetória em prol da sua comunidade.
Cícera da Silva Martins, hoje com 54 anos, veio do interior de Beberibe para a capital de Fortaleza aos 3 anos. Já morando na capital, mudou-se com seu filho, que hoje tem 29 anos, e mora há 26 anos no planalto do Pici, desde que se separou de seu marido, após sofrer violência doméstica, psicológica e patrimonial. Por isso, desde sempre visa questões voltadas para a mulher, pois, a cicatriz que é muito fina, sempre sente quando uma mulher é violentada. Atualmente é pedagoga e trabalha como articuladora comunitária e educadora social na biblioteca comunitária da comunidade, atendendo por volta de 50 crianças e mais de 30 famílias.
Desde de jovem já ajudava nos movimentos sociais religiosos, onde atuava em áreas vulneráveis da cidade, pelas comunidades eclesiais de base. Ao voltar a morar no Planalto, decidiu que também voltaria a trabalhar com a igreja, e com a ajuda das irmãs da capela da região, as quais iniciaram o movimento de ocupação, pôde se manter até se estabilizar. Além disso, foi convidada a atuar como educadora das famílias que vieram para a ocupação na época.
Na década de 90, junto com outras mulheres da comunidade, começou a observar as carências urbanas, sociais e educacionais do local onde morava. Assim, surgiram muitas ações sociais, como cursos de costura, pintura, crochê, e foi fundado o grupo de desenvolvimento familiar (GDFAM). E com o apoio das irmãs, surgiram mais cursos, como música e informática para jovens.
O Governo nunca contribuiu ou olhou para as ações de Dona Cícera e dos outros ativistas, os institutos e espaços sociais eram mantidos por doações de entidades, projetos e voluntariado; como a escola, que era mantida por voluntários estrangeiros.
Em 2005, Dona Cicera, com os outros moradores iniciaram o processo de regularização fundiária da região, com apoio de entidades como Ceará Periferia, Caixa Econômica e Escritório de Justiça e Paz de Recife, por meio do projeto "Regularização Cidadã". E foi quando iniciou o processo de tornar a comunidade uma ZEIs e de formar os moradores no âmbito da moradia. Desde então, nunca parou dentro do movimento pela luta de moradia, onde estava sempre a frente nas organizações e projetos.
Em 2010, os moradores voltaram para a questão da regularização fundiária, pois o espaço, por ser uma área de litígio, estava em ameaça de desapropriação. Então, por volta de 300 moradores foram para a audiência para que as documentações das casas fossem resolvidas para mantê-los no local. E junto com outras comunidades ameaçadas de remoção e desapropriação, iniciaram uma luta constante e que ainda existe, para que não só a moradia digna fosse uma realidade, mas todos os direitos fossem efetivados.
Lembra, que durante o período da Copa do Mundo, em 2014, em que muitas casas foram removidas e ameaçadas de remoção, junto dos movimentos sociais, ela participou de ações e protestos. A partir daí, junto com outras ZEIs já efetivadas, pôde conhecer as entidades acadêmicas e participar de formações sobre o direito à moradia. Período em que surge a Frente de Luta por Moradia, formada por entidades universitárias e moradores.
Os momentos mais marcantes, lembra Dona Cícera, foram as manifestações e os confrontos com o governo e a polícia para que os direitos das comunidades fossem efetivados. Ter mais fé em si, na luta, é o que Dona Cícera leva para si, e vê o quanto o governo decepciona as comunidades, os moradores, a cidade. E acredita que o povo deve acreditar mais em sua coragem, pois o governo não faz o que promete e faz o que não deve, não respeita as comunidades. "Nós que estamos na base, só contamos com a gente mesmo".
Lembra de um dia, ela com mais 30 companheiros foram para a prefeitura e enfrentaram frente a frente polícias, seguranças, e lembra ter sido um dos momentos que mais marcaram sua luta. E brinca, que tudo isso é uma "santa loucura". "É uma falta de respeito muito grande com nós, que estamos na luta, prometem mas nunca levam a frente".
Sente que as entidades acadêmicas foram muito importantes para a formação dos moradores, para que entendessem seus direitos.
Lembra o quão árduo foi processo para que o Plano Integrado de Regularização Fundiária fosse efetivado, que foi conquistado apenas em 2018, por meio de muita mobilização e apoio.
Conta as dificuldades enfrentadas pela comunidade por conta do descaso governamental, pela falta de acessibilidade de transportes e pela violência.
“Ficamos desacreditados (...) a prefeitura boicota você, a gente também desacredita do poder público.”
Para a construção de uma nova sede do Cuca, foram realocados locais como o posto de saúde, que foi doado pela UFC e a creche, que quase foi mudada para um local bem mais longe. Mas Dona Cícera sente que a prefeitura não compreende as necessidades dos moradores.
Atualmente, a comunidade continua na luta para a reforma do Plano Diretor, mas dona Cicera tem medo da especulação imobiliária pois vê o avanço de construções no bairro do Pici. Dona Cicera, embora as dificuldades, ama seu lar, sua comunidade.
“Eu não luto só por mim, pela minha casa, eu luto pelo bem comum da comunidade onde estou (...) A luta é micro, mas também é macro.”
Contando sobre como tem sido difícil, durante o período da pandemia, ver muitas famílias passando por necessidade, questões psicológicas e desemprego, sonha por uma realidade melhor. Sonha hoje em ver ruas limpas, melhores transportes públicos em sua comunidade e que todos possam ter uma casa, um lar, uma moradia, uma educação e uma vida digna e saudável. Para ela os momentos mais felizes são ver as pequenas conquistas na sua comunidade, ver seus trabalhos dando resultado, acontecendo.