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Dona Lúcia

Vestida em uma blusa que estampa a luta de uma vida inteira, Lúcia de Vasconcelos Sampaio relembra sua história de vida. Já quase na casa dos 70, aos 69 anos, ela é hoje educadora popular no Escuta- espaço cultural Frei Tito de Alencar, integrante do grupo de mulheres, é engajada na luta pelas zeis do pici e na pastoral da igreja popular. Dona Lúcia é natural do município de Ibiapina e conta as alegrias e dificuldades da infância com os 10 irmãos e os pais.

Aos 12 anos , Dona Lúcia chega na cidade de Fortaleza pela vontade da mãe de que a filha não visse as dificuldades que o mundo tinha para mostrar, já que sua cidade natal tinha seus momentos de faltas. Porém, as tantas realidades que Dona Lúcia iria testemunhar não seria o mar de rosas que a mãe queria afastar dos olhos da filha.

A luta por um mundo melhor acompanha os passos de Dona Lúcia desde a adolescência no bairro Antônio Bezerra , em que participava de grupos de jovens e movimentos populares. Tinha abertura para a militância política e encontrou o propósito de toda sua vida.

Um convite para visitar uma comunidade seria o divisor de águas na sua vida. Já engajada com ideias sociais, Dona Lúcia é chamada por um grupo de missionários para conhecer a Favela da Fumaça, localizada no Planalto do Pici. Foi a partir desse momento que ela percebeu o quanto estava imersa na sua bolha e que ela não tinha visto dificuldade de verdade. Se deslocou de muitas concepções que tinha sido colocadas no seu caminho sobre o que era a favela. Ela se pergunta como não tinha percebido antes que quem mais precisava de ajuda estava tão perto.

 

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Foi nessa quebra de paradigmas que o despertar sobre a favela aconteceu. Percebeu uma população que estava à margem da sociedade e que era discriminada pelo lugar que morava. Dona Lúcia encontrou o cenário que se estenderia por mais de 40 anos da sua luta por moradia digna. A Favela da Fumaça também foi responsável por unir duas histórias que se cruzam por uma causa, pois foi lutando por moradia digna que conheceu seu marido e companheiro de luta.

 

Depois de um ano do seu encontro com o local que é mais sua casa do que onde de fato mora, ela se viu casada e imersa na ideia de melhorar a Favela da Fumaça. Do casamento foram gerados três filhos, que são engajados o suficiente com o Escuta, já que de acordo com Dona Lúcia, “eu e meu marido não somos bons exemplos”.

Ela lembra que esteve presente na primeira reunião para organizar a ocupação do Planalto Pici com o marido e os filhos ainda crianças. Porém, abriu mão dessa causa pela Comunidade Eclesiástica de Base (CEB’s), que é a ideia de ter uma igreja inserida na comunidade. Ela conta que poucas são as pastorais sociais e que isso é uma contradição. Seu seguimento é a igreja do caminho por uma teologia da libertação. A partir disso, mutirões, partilhas, bazares e rifas foram organizados para construir o que hoje é o Escuta. Por questões burocráticas se desvinculou da igreja e formou uma associação de moradores para criar o Escuta

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dona Lúcia lembra os percalços que se apresentaram no seu caminho, alguns que são bem comuns, como ser violentamente chamada de comunista. Ela conta um pouco a história da figura que inspirou o nome Escuta, Frei Tito de Alencar, que foi um padre perseguido na Ditadura Militar por ser envolvido com a teologia da libertação. Além dos insultos, o marido já levou um tiro na perna e ela já foi ameaçada com uma arma apontada na sua cabeça em uma celebração. Muitos episódios traumáticos, que até já levou Dona Lúcia à delegacia, mas nenhum deles a fez largar a mão do seu propósito.

 

Dona Lúcia mora no bairro Jóquei Clube mas considera o seu lar de verdade a Favela da Fumaça. É lá que ela dedica horas do seu dia e que sente uma grande conexão com os tantos moradores. Ela relata que muitos dizem, “Você é louca”, por está inserida com essas questões e por não ter medo dos supostos perigos que são vinculados à favela, mas isso também não freou sua jornada. Foi a comunidade que fez ela ter uma visão mais clara sobre a luta.

 

A alfabetização e a educação foram os primordiais objetivos para a Fumaça. Já foi fundada uma escolinha, que tinha como professoras as jovens da comunidade que fizeram formação na metodologia popular do Paulo Freire. Em outro momento um cursinho foi oferecido para ajudar os jovens a conquistarem seu espaço na Universidade. Sem contar as tantas oficinas que foram oferecidas pelo Escuta, já que a formação educacional é um pilar para a instituição.

 

De acordo com a educadora popular, a ocupação do Planalto do Pici começou com o intuito de mudar as condições de saneamento básico, de luz e água. Ela lembra o quanto insalubre era a comunidade, sem calçamento e com muita lama em períodos chuvosos. Ela lamenta que crianças já tenham nascido nesses espaços. Ver essas pessoas sendo humilhadas é um peso no seu coração. Ela e o marido sempre tentaram ajudar de todas as formas, até fazendo o velho fusquinha do marido como transporte para muitos dos moradores.

 

Quando questionada sobre sua relação com a luta por moradia digna, ela conta que sempre foi sensível à questão da moradia. Em noticiários, ela vê tantas situações de casebres que foram destruídas pela chuva.

Não tem como não se sensibilizar sabendo que a pessoa tem direito a melhoria de vida.” 

 

Nunca participou diretamente de uma ocupação, mas tem a compreensão de que a moradia e a dignidade são essenciais para as pessoas. O marido dela até já foi Secretário de Habitação, por isso ela já presenciou projetos que buscavam melhorar as condições das casas, pois muitas não tem um muro, um número em frente da sua casa e nem eram reconhecidos como endereços. Já quando foi perguntado o que mudou na sua vida desde que entrou na luta por moradia digna, ela diz que, ter tido a oportunidade de criar uma consciência crítica, apesar de soltar a frase

Por que eu não sou alienada? Criei essa consciência só para sofrer.

 

A relação com diferentes lugares e pessoas também é um presente para Dona Lúcia. “Não somos um cubículo que fica na Fumaça, participamos da cidade”, afirma a educadora popular. Ela diz o quanto é gratificante encontrar um tempo depois às tantas pessoas que passaram pelo Escuta ganhando seu espaço na sociedade. Ver pessoas saindo da lama. Aquela lama que ela encontrou quando conheceu a comunidade. Dona Lúcia também aponta o feminismo como algo que acrescenta na sua jornada. “É importante como mulher descobrir o viés feminista porque ele faz um diferencial de luta também”.

 

Ela lamenta por as vezes não conseguir ajudar o tanto que queria, Ela cita as distribuições de quentinha, em que aparece sempre o triplo de pessoas previstas. Testemunhou e ainda testemunha muitas dificuldades.  “Não temos grandes alegrias, mas são as pequenas alegrias que surpreendem”. Ela afirma que ver a mudança nas tantas vida é sua maior vitória. Também cita algumas ações políticas que contribuíram para ver um melhor cenário, como o bolsa família.

 

Dona Lúcia conta que as amizades que se eternizaram por causa da luta são grandes conquistas na sua vida. Além das realizações das pessoas que passaram pelo Escuta, quando passaram no vestibular, que conseguiram um doutorado, quando conquistaram um concurso ou ganharam espaço na sociedade. Como lema de vida, Dona Lúcia diz,

Que ninguém passe por você em vão.

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